Herança (Rahva)

O guarda fez um movimento com a mão, girando o punho no ar enquanto vagarosamente os portões se abriam. Eram grande toras de madeira unidas por cordas grossas e pareciam subir com um aparato de roldilhas. Apesar da aparência mais simples daquele posto, era possível já ver o que os estudiosos de Vengerberg chamavam de ciências. Apenas uma pessoa conseguiu erguer aquele portão e o que parecia dar toda a sustentação, era esse sistema de roldilhas e cordas entrelaçadas.

- Bem vindos à Vengerberg.

Apontou o caminho para dentro do posto. Tisein parecia prestar bastante atenção no mecanismo que acabara de conhecer, algo seria seria bastante útil em diversas outras situações e apesar de Novigrad ter um ar mais aristocrático, nunca tinha visto esse tipo de mecanismo por lá.

- Não temos muitos confortos aqui no posto, mas pode parar par descansar. Com mais uma hora de viagem você chega na cidade.

O resto do caminho foi tranquilo e provavelmente não veria Aen Elle atravessando postos de guarda, ainda mais armados como estavam. Para alcançar Rahva e Tisein, teriam que dar uma volta muito maior e com isso, eles ganhavam algum tempo de distância. Os cavalos, como já mostravam antes, estavam muito cansados - então parar ali pelo menos por algumas horas seria prudente. A carruagem coberta fornecia um local para que pudessem descansar, também.

E assim foi.

Passadas algumas horas, depois da noite cair e avançar na madrugada, Rahav ouviu uma comoção numa das extremidades do posto. Era uma discussão baixa, mas o silêncio era aliado de sua genética élfica e permitiu que pudesse ouvir com alguma clareza uma das frases, que dizia:

- Como é que ele está de pé?

Diante de tudo o que passou, caso fosse se certificar da presença de Tisein, ele dormia tranquilo ao seu lado.

Abriu os olhos devagar e os esfregou com os punhos fechados para afastar o sono. Sentou-se ali mesmo na carruagem e confirmou com a cabeça, quando recebeu as instruções de Rahva. Ficou olhando ela se afastar na direção do grupo de soldados - não era longe e ambos conseguiam se manter no campo de visão um do outro. Haviam tochas acesas que iluminavam bem o local e tinha um cheiro acre forte em toda a região. Ao ganhar espaço e conseguir observar, era possível ver uma figura humanóide com um talho grande na barriga, completamente cortado, mas incrivelmente a figura continuava de pé ali. Estava amarrado e tentava avançar nos soldados ao redor. Os comentários sempre girava em torno de "como essa criatura ainda estava viva?".

Em um dado momento, a criatura avançou contra Rahva. Não chegou perto - por estar amarrado. Ali, Rahva conseguiu ver os estágios em putrefação no rosto e olhos - era diferente de um devorador de corpos, não estava transformado. Era realmente um humano morto, mas ainda estava de pé.

- Rahva?

Era Tisein, que se aproximava vagorosamente por trás e tentava entender o que estava acontecendo no meio da multidão.

Tisein assentiu com o braço e continuou segurando a mão de Rahva. A criatura de há pouco, não parecia ter um alvo comum - tentava avançar em todos e tudo ao mesmo tempo, como estava amarrada, não tinha sucesso. Mas todos os movimentos não pareciam nenhum pouco calculados, somente avançava como um animal - não, pior do que um animal, pois não tinha nada em seus olhos, nem medo e nem receio de ir contra as lâminas que estavam apontadas em sua direção por pura precaução. Estava simples atacando devido a um tipo de instinto que se mantinha ali, mas as feições e todo o resto, eram de um homen.

- Estava morto até hoje de manhã.

O soldado questionado respondeu, claramente assustado e com pesar em sua voz.

- Depois de umas horas, quase agora quando deu a madrugada, ele se levantou. Estava... Estava bem devagar, se mexendo de um lado pro outro, bem lento. Foi ficando mais espertinho e agora está assim.

Não sabia descrever muito bem o que tinha acontecido, mas Rahva poderia supor que houve uma evolução da criatura, desde o momento que acordou de sua morte até o momento atual. Como se estivesse medindo terreno e aprendendo o que, como e a razão de fazer. Embora não emitia nenhum som compreensível além dos rugidos.

- Não sei o que aconteceu, ele foi executado e pronto. Aí voltou. O capitão já mandou chamar um mago de Vengerberg. Deve chegar pela manhã.

Vengerberg estava distante de Novigrad em todos os sentidos, apesar de terem uma boa relação econômica e negócios com importações - não ligavam muito para quem seria o novo líder, sendo Ehmyr ou Radovid - não fazia diferença. De qualquer forma, nenhum dos dois tinha muito apreço pela magia ou pelas ciências. E como a busca estava em eliminar esse tipo de criação, talvez Tisein tivesse um pouco mais de segurança naquele caminho, apesar de ter surgido essa nova criatura no caminho. De qualquer forma, era um conhecimento bom para se ter e ficar atento no resto da jornada, com tudo o que estava acontecendo, mais isso na pilha de problemas.

A madrugada toda já tinha quase ido embora e faltavam apenas umas duas horas para que o sol surgisse.

Enquanto cruzava o caminho de saída, deparou-se com uma comitiva entrando no pequeno acampamento - alguns soldados à cavalo e uma carroça em bem melhores condições que a de Rahva e Tisein - muito provavelmente ali estaria o mago que foi chamado para investigar a situação. Pareceu mostrar algum interesse, olhou pela janela da pequena carroça e encarou Rahva por alguns instantes, mas todo o interesse ficou por isso mesmo. Como estavam próximos de Dol Blathanna, deveria ser bastante comum que elfos frequentassem a região. O homem em questão não precisava identificar-se como um mago, a mera imagem era suficiente - usava roupas adornadas em ouro e tinha um chapéu com uma cauda que caía para trás de sua cabeça, toda a carroça também tinha um perfume forte e enjoativo, adocicado.

Só era possível imaginar como seria o estudo com aquela criatura que vira horas antes, certamente não era nada parecido com qualquer coisa que já tivesse visto antes - ou mesmo batia com qualquer história humana ou de seu povo. Parecia ser um tipo de criatura completamente nova e pior, que tinha se apossado do corpo de outro, segundo o relato do soldado que lhe explicou naquele momento, claro.

Tisein ergueu-se no momento em que as carroças se cruzaram, tinha uma careta, forçava o nariz e segurou a boca aberta por alguns segundos - então, espirrou. Talvez o cheiro do perfume. Coçou os olhos e foi para junto de Rahva.

- O que é aquilo?

Apontou para a carroça alegórica enquanto se afastavam. O sol começava a ficar um pouco mais forte e começava a derreter um pouco da fina camada de neve da noite anterior, ainda estava frio, mas ficar diretamente na luz, era um alento. Como a estrada era bem aberta até Dol Blathanna, frio não seria um problema.

- Acha que falta muito? Será que conseguimos mandar uma carta para Gimhall quando chegar lá?

Tisein assentiu rapidamente após ouvir que sua carta seria entregue. Não tinha como saber qual seria a situação de Gimhall - mas o garoto acreditava que seu outro guardião ainda estava vivo. Ele coçou a testa e tirou um pouco do cabelo bagunçado da frente do rosto.

- Talvez eu precise de um pouco de ajuda, não sei ainda muitas palavras...

Sorriu, logo em seguida. Era confortante, de certa forma, ver que ele estava se recuperando e voltando ao seu estado normal depois de tantas surpresas no caminho - começava a parecer o garoto do início da jornada. Tão logo sairam do acampamento, seguindo pela estrada, havia um campo gigantesco dos dois lados, com a maior plantação de lavanda que já vira. Eram pés altos, que passavam facilmente dos 2 metros de altura, muito diferente dos arbustos que eram comumente encontrados em vários locais e deixavam um cheiro agradável no ar, além da cor púrpura que refletia no forte sol da região. Abelhas voavam por cima das plantas. Vengerberg devia usar bastante as plantas para óleos e produção de mel, também.

Já era possível ver as torres mais altas de Vengerberg e o caminho que se dividia, para Dol Blathanna. Poderiam fazer mais uma parada ou seguir diretamente para o destino combinado. Tisein ficou de pé, de repente e apontou no meio da fazenda de lavanda - o vento brincava com as flores e as jogava de um lado para o outro, devido ao tamanho, algumas iam até o chão e voltavam - balançando com força.

- Olha!

Era uma dança do vento com as flores púrpura, indo e voltando e apesar da gentileza do vento, os galhos finos da lavanda sempre desciam quase ao chão. Em um dado momento e num ponto bastante distante, um buraco se formou - também da mesma forma, galhos empurrados pelo vento para baixo, mas não voltaram. Outros, em sequência a esses também foram baixando e não voltando conforme o vento os empurrava de volta, deixando uma espécie de caminho - embora não fosse realmente possível verificar a causa, devido a grande distância e outros galhos no caminho.

- Olha! Agora quebraram!

A medida que avançavam na estrada, mais flores de lavanda iam sendo baixadas. Levou um tempo para que pudessem entender o que estava acontecendo com maior clareza. As plantas que estavam sendo baixadas não o faziam por conta do vento, estas sempre estavam voltando e continuavam a despeito do que ocorria na trilha que se mostrando vindo em direção de ambos. Ao longe, pareciam pessoas comuns, mas Rahva tinha visto de perto aquele tipo de criatura e agora via novamente o longe, um grupo de quinze - contando rapidamente - corriam e andavam em passos trôpegos, tropeçando uns nos outros e por vezes um ou outro caindo e se erguendo. Estavam relativamente devagar, mas se fossem realmente aquelas criaturas - faria bem lembrar das informações do soldado; "depois de umas horas, quase agora quando deu a madrugada, ele se levantou. Estava... Estava bem devagar, se mexendo de um lado pro outro, bem lento. Foi ficando mais espertinho e agora está assim."

- Rahva! São... São iguais aquele lá do acampamento.

Por mais que não tivesse comentado antes, seja por medo ou por qualquer outro motivo - agora estava claro. Tisein também tinha visto as criaturas - mas, assim como todos viram - não sabia o que eram. Tinha uma longa distância entre Rahva/Tisein e as criaturas, mas se fosse realmente verdade aquilo poderia se tornar uma nova perseguição. Agora, já bem mais próximos da forquilha na estrada, ficava a decisão a ser tomada. Buscar abrigo e proteção em Vengerberg ou arriscar todo o caminho para Dol Blathanna.

Para Vengerberg, já era possível ver os muros - em poucos minutos estariam lá. Para Dol Blathanna, teriam algumas horas até chegar no limite da cidade. Era bem possível que a carta que Gimhall tinha mandado antes já tivesse chegado e talvez alguém estivesse à caminho, mas seria arriscar e contar com a sorte - que, nesses últimos dias, não parecia estar do lado deles.

As criaturas ainda estavam distantes, eram uma ameaça lenta - mas certa. Não paravam em nenhuma situação e continuavam sempre seguindo, independente do que quer que surgisse na frente - eram um grupo grande e alguns até mesmo caíam no caminho, eram pisoteados e voltavam a se erguer para continuar sua lenta perseguição. Tisein afirmou com a cabeça diante das informações que Rahva lhe passou e puxou o capuz para cobrir a cabeça e parte do rosto.

Os portões de Vengerberg, diferente do acampamento anterior - estavam abertos. Era uma cidade grande e que aceitava bem seus visitantes, na maioria das vezes, independente de quem fossem. A medida que adentravam a cidade, era possível já ouvir alguns comentários mais altos referindo-se às criaturas que vinham na direção da carroça e, por consequência, da cidade. As pessoas começavam a se amontoar na entrada do portão e entravam em uma espécie de histeria coletiva a medida que viam que estavam se aproximando. Não somente as pessoas mais próximas, mas os fazendeiros da plantação de lavandas que estava bem na frente corriam na direção do portão para que não se encontrassem com as criaturas.

Tão logo, o grupo de criaturas que vinha na frente tornou-se pequeno diante de um grupo ainda maior que vinha no encalço. Era uma horda e a plantação ia sendo completamente amassada a medida que caminhavam. Não demorou muito para que a guarda da cidade percebesse o que estava acontecendo e logo começou a se organizar para iniciar o fechamento dos portões.

- Rápido! Entrem todos!

Cruzavam soldados com o povo comum, tomavam posições de ataque para defender aqueles que vinham correndo na direção da cidade.

A medida que avançavam pela cidade era possível ouvir os sinos tocando - alertavam para a ameaçava que se aproximava dos portões. Via soldados correndo na direção do portão principal - não eram muitos. Vengerberg não tinha uma tradição militar como as maiores cidades do continente, mas mesmo assim deveriam ser mais do que o suficiente para as criatuas que se aproximavam e o medo de Rahva se confirmou - a cidade estava adotando uma tática de proteção para cerco, como foi direto para a saída na direção oposta, viu que estava fechada. Mas pelo o que conhecia das táticas militares, pelo convívio com outros soldados, sabia que o responsável pelo exército dali teria fechado toda a cidade. Um militar com uma patente maior passou por Rahva e notou suas roupas e armas.

- Suba até uma das muralhas, tenho certeza que o capitão vai lhe pagar bem pelos serviços.

Poderia seguir e talvez, pelo menos, ver o que acontecia do lado de fora ou ainda tentar encontrar uma saída para fora dali. Podia ver que os soldados se alinhavam na muralha e outros, ao mesmo tempo, saíam pelo portão principal - agora fechado, mas com uma pequena escotilha lateral - para efrentar a horda de criaturas frente a frente.

Tisein confirmou com a cabeça, como já verificado antes - tinha recuperado-se do choque do ataque à Tisein e o ferimento que viu contra Gimhall. Ao mesmo que tempo que se chocava facilmente com algumas coisas, a recuperação também não demorava muito. Era uma característica própria de crianças e no meio de tudo aquilo ali, era fácil de esquecer que Tisein era isso, apenas uma criança. Ele partiu a correr atrás de Rahva e apanhou um pedaço de madeira no chão - já o tinha visto com essa 'arma' antes, no primeiro encontro contra os bandoleiros, confiante de que poderia ajudar de alguma forma naquela situação.

Soldados corriam em diversas direções e assumiam postos rapidamente, alguns com bestas e arcos - outros posicionavam com atiradoras de pedras. Havia óleo nos muros, mas com um ataque tão repentino - não estava pronto para ser usado, devido ao frio da região, estava quase sólido - para que estivesse pronto, precisaria ferver por algumas horas ainda, mas de qualquer forma, não era certeza de que teria algum efeito contra as criaturas.

Como previsto - havia sim um capitão. Uma capitã, na realidade. Era uma mulher alta, com cabelos raspados e armadura completa - as placas que usava tinham detalhes esverdeados, mas eram bastante simples. Não destoava muito do que o restante dos soldados usavam, mas ao mesmo tempo, ficava clara sua posição na cadeia de comando. Passava ordens rapidamente e apontava os locais em que cada um deveria seguir. E foi quando notou Rahva.

- Ah! Que situação para uma visita, Aen Seidhe! Vejo que veio colocar seu arco à nosso serviço, também...

Apontou no canto esquerdo da muralha, havia um destacamento de seis arqueiros - estavam armados e com alvajas cheias, prontos e preparados para iniciar a defesa.

- Cuide daquele destacamento. Indique o que precisam fazer, acredito que sua experiência será o suficiente.

Considerou a experiência de Rahva pelo conhecimento comum de que elfos tinham maior facilidade no uso de arcos e eram realmente conhecidos por essa aptidão. O pequeno grupo que tinha visto antes e pserguiu Rahva e Tisein parecia aumentar e aumentar. Os olhos élficos podiam acumular toda aquela quantidade e fazer um cálculo rápido - era difícil de considerar com certeza os números, pois andavam amontoados e se atropelando, mas se fossem um exército 'normal', era fácil dizer que passavam do milhar.

Os homens estavam tensos e um claro medo pendia na cabeça ali de todos, a realidade estava sendo cortada e parecia que o último recurso era um fiapo de cabelo. Aqueles homens, em sua gritante maioria, nunca se quer tinha visto um monstro em toda a vida - que dirá milhares. Aquele mar de criaturas que avançava sem pensar, se atropelando e urrando sons irreconhecíveis usando apenas o que restava em suas gargantas era o ponto de quebra para eles. Mas ouviram Rahva e ouviram com atenção - estenderam os braços e seguraram com firmeza as cordas dos arcos, tremiam com a tensão destes, esticados - mas ouviram e as palavras tomaram forma naquele momento, entraram em seus ouvidos e se transformaram na calma e na força.

O final, também foi ouvido "DISPAREM".

O mundo congelou por alguns instantes e quando voltou, voltou com força e velocidade. O apito mudo que soa nos ouvidos antes da saraivada de flechas - por coincidência ou fazendo parte do ataque em conjunto, quase todos os arqueiros da muralhas soltaram suas flechas no mesmo instante.

O resultado de Rahva foi perfeito; um, dois, três, quatro, cinco, seis e sete. Oito. Oito criaturas abatidas. 6 flechas dos arqueiros, 1 de Rahva e o oitavo foi acertado pelo pedaço de madeira que estava com Tisein. O garoto atirou ao mesmo tempo que os demais - estava satisfeito com o seu resultado e afastou-se um pouco do muro, logo depois - provavelmente procurando por outra 'arma' que pudesse usar. Os outros grupos tiveram resultados parecidos, mas era ainda uma grande quantidade de criaturas que continuava vindo e forçando os muros. A tática usada por Rahva foi prudente, mas outros grupos não tiveram a mesma sagacidade e miraram suas flechas diretamente para baixo, fazendo com que os mortos começassem a formar um primeiro degrau.

Os soldados sob o comando de Rahva tiravam mais flechas da aljava e armava seus arcos.